terça-feira, 27 de abril de 2010

A Palavra no Muro Ficou Coberta de Tinta...

As escrituras pintadas pelo Profeta Gentileza em 56 pilares do viaduto do Cajú, no Rio de Janeiro, serão restauradas por uma equipe da Universidade Federal Fluminense (UFF), como atividade do projeto Rio com Gentileza.




O projeto tem como finalidade desenvolver ações para a recuperação da obra do profeta. O trabalho de restauração terá início no dia 06 de maio de 2010, com previsão para terminar em 08 meses.

Os cariocas, ou frequentadores do Centro da Cidade Maravilhosa, que passaram pelas rua do centro do Rio na década de 80 conheceram bem a energia desse ícone da cidade. Porém, foi pela voz da cantora e compositora Marisa Monte, com a canção Gentileza, uma forma de protesto após a Comlurb ter pintado as pilastras de cinza, no final dos anos 1990, que ele passou a ser mais amplamente conhecido.


A História do Profeta

"José Datrino era um empresário, dono de uma transportadora de cargas no Rio de Janeiro, que se viu sacudido por um acontecimento de grande força trágica: a queima de um grande circo na cidade de Niterói. Após seis dias, ele recebe um chamado divino para que deixe tudo que possuía e venha viver uma missão na Terra, assumindo uma nova identidade. Como explicar tal atitude e tal mudança de comportamento frente à realidade? Como é possível que um homem seja levado a abandonar tudo, recolhendo, de um episódio, o anúncio de um novo sentido à vida?

Nascido em 11 de abril de 1917, em Cafelândia, interior de São Paulo, José Datrino era o segundo filho de Paulo Datrino e Maria Pim, dentre os onze filhos do casal. Viveu até os 20 anos naquela região lidando diretamente com a terra, onde ajudava a família a manter-se, mesmo em épocas difíceis. Rapaz franzino, trabalhava puxando carroça para vender lenha nas cidades próximas. Algumas vezes, chegava a fazer duas viagens, numa mesma noite, para prover a família. Como lavrador aprendeu a reconhecer a riqueza da natureza. O campo ensinou também José a amansar burros para o transporte de carga. Tempos depois, Gentileza se dizia "amansador dos burros homens da cidade que não tinham esclarecimento".

Desde os doze anos de idade, José já prenunciava uma missão. Achava que teria de "ter uma família, ter filhos, construir bens, mas que, um dia, teria de deixar tudo". O comportamento estranho do filho levou seus pais à suspeita de que fosse acometido de loucura. Razões místicas também foram buscadas e José foi levado a curadores espíritas para que seu problema se resolvesse. Em 1937, já com 20 anos, deixa a cidade de Mirandópolis, sem avisar a família, rumando para São Paulo. Seu destino final era o Rio de Janeiro. Ao se dar conta da partida do filho, seu pai seguiu seus passos até São Paulo, mas não conseguiu interceptá-lo. Para a família, na época, o filho tinha sido levado por um guia espiritual.
José Datrino ficou quatro anos sem dar notícia a seus familiares de Mirandópolis. Conta seu irmão Pedro que, toda vez que ouvia a Maria Fumaça apitar, seus olhos se enchiam de lágrimas na esperança do retorno do irmão. Quando souberam de José, ele já estava estabelecido no Rio e pedia à mãe que lhe enviasse seus documentos.
No Rio, casou-se com Emi Câmara, com quem teve cinco filhos, "três femininos, e dois masculinos".
O sustento de José Datrino e sua família provinha de fretes que ele também passou a fazer na cidade.
Aos poucos, fez crescer o negócio e, finalmente, estabeleceu-se com uma transportadora de cargas na Rua Sacadura Cabral, no centro da cidade. Cumpria-se seu prenúncio de infância: José Datrino constituíra família e bens; era um empresário possuidor de "três caminhões, três terrenos e uma casa".

Com a vida "estabelecida" no Rio de Janeiro, deu-se a grande mudança na vida de Datrino. Conta Maria Alice, sua filha mais velha, que, numa noite, viu o pai atormentado por uma visita de alguém que queria tornar-se sócio de sua empresa. Com a partida da visita, José Datrino correu para o quintal, e ali cobriu todo o corpo de terra e lama. Soltou, em seguida, os pássaros e as galinhas. Este episódio marcante já revelava a intensidade daquele momento para o pai de família José Datrino: invocando o direito de reesculpir-se do barro, um novo homem fazia-se de um novo humus.

A partir de sua "revelação", ocorrida após a queima de um grande circo em Niterói, o Profeta deixa tudo para a família e ganha uma nova identidade: JOZZE AGRADECIDO ou ainda GENTILEZA. Sua atribuição: "vir como São José, representar Jesus de Nazaré na Terra". Curiosamente, o Profeta já sugere, em seu nome, a possibilidade de sua missão. Datrino significa, em italiano, de três, enviado pelo Trino (Trindade).
Gentileza conta que acabou sendo internado três vezes como "débil mental, como maluco". Numa dessas internações, o "médico psiquiatra" disse à filha do Profeta que seu pai estava tomando choque à toa, pois não era maluco. No pátio do manicômio, relata Gentileza, os enfermos ficavam todos à sua volta, ouvindo sua pregação. Outro médico teria dito ao Profeta: "Gentileza, você veio aqui para nós te curar ou para você nos curar?" Depois destas passagens, Gentileza ganhou novamente a rua. A partir de então, sua figura singular passou a atrair toda sorte de atenção. Aos que o apontavam na rua, como maluco, ele dizia: "maluco pra te amar, louco pra te salvar" ... "seja maluco mas seja como eu, maluco beleza, da natureza, das coisas divinas."

Em meados dos anos 60, com o verbo na ponta da língua e seu estandarte em punho, Gentileza se apresenta nos lugares como representante de Deus e anunciador de um novo tempo.

Aos poucos, torna-se um personagem reconhecidamente popular. Cria provérbios e máximas para alcançar as pessoas, ensina a gentileza e proclama os costumes em plena época do movimento hippie, do rock e da minisaia. Apesar de cabeludo, Gentileza divergia, em muito, dos jovens 'contestadores' de então. Proclamou o AMORRR espiritual, a HONRRA e o "fim dos vícios da humanidade".

Gentileza jamais aceitou dinheiro das pessoas: "é mais fácil um burro criar asas e avoar do que um centavo de alguém aceitar". Ao contrário, denunciava: "cobrou é traidor - o padre está esmolando, o pastor tá pastando e o Papa tá papando, papão do capeta capital". A pregação anti-capitalista constituiu a denúncia maior do Profeta. Às vezes foi tomado como comunista, tendo que explicar às "autoridades" o porquê das iniciais PC em seu estandarte (na época). Na ambigüidade criada, não se tratava de uma vinculação ao Partido Comunista, mas ao Pai Criador.

Todos esses aspectos contribuem para que, cada vez mais, Gentileza apareça e se destaque na sociedade da época. Gentileza era um caminhante incansável, que estendeu sua presença a vários bairros do Rio de Janeiro, às cidades da Baixada Fluminense, a Niterói e São Gonçalo. Entre Rio e Niterói, Gentileza consagrou-se como o "pregador da lancha", que liga as duas cidades pelo mar; era conhecido de todos naquela travessia. Conhecido também dos médicos do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba (Niterói), para onde foi levado, inúmeras vezes, por policiais.

Em fins dos anos 60, o Profeta inicia uma série de viagens que o tornarão conhecido no interior do País. Nessa época, retorna a Mirandópolis reapresentando-se como Profeta Gentileza. Em 1970, parte para o interior de Mato Grosso, rumo a Campo Grande e Aquidauna (atual MS), para pregar a gentileza. Nessa última urbe, sofreu sua primeira grande adversidade como profeta: foi detido por policiais que o conduziram à delegacia. O delito cometido era o de estar pregando sem a Bíblia na mão. Pelo fato de assim constituir uma ameaça ao bem público, Gentileza ficou uma noite preso, tendo seu cabelo cortado e seu estandarte quebrado.

Que mal fez esse homem? - dizia a manchete do jornal de Campo Grande, para onde Gentileza se deslocou depois do ocorrido. Quanto ao fato de pregar sem a Bíblia, o Profeta cunhou uma frase lapidar: "Quem é mais inteligente, o livro ou a sabedoria? Não é a sabedoria? Então eu sou a sabedoria, nós somos a sabedoria de Deus."
Passado o susto, o Profeta prossegue em sua missão. Ao retornar ao Rio, inaugura um novo estilo. Confecciona uma cartola, às avessas do Tio Sam, onde assinala seus preceitos e virtudes. Com nova indumentária e um álbum a tiracolo repleto de matérias jornalísticas a seu respeito, Gentileza torna-se, novamente, assunto dos jornais que o chamam de "Profeta Tropicalista" e "Chacrinha da Calçada".

Pouco depois, novo visual: de cabelo curto, roupa social, Gentileza percorria os jornais para anunciar sua mensagem e sua diligência contra os vícios. Em meados dos anos 70, de cabelo já refeito, ele assumia o terno e a gravata, fazendo-se fotografar em diversas redações de jornais.

Nos anos 70 desponta seu culto à brasilidade, aos temas da bandeira nacional e ao herói cívico de maior expressão na história do País: Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. Gentileza se refere a Tiradentes como SSENHORR PAPAI JOAQUIM - JOSE DA SILVA XAVIER que, assim como Jesus, sofreu por seu povo. De fato, Gentileza faz vir à tona uma simbolização assente no imaginário cultural brasileiro, que aproxima Jesus e Tiradentes: heróis e mártires, semelhantemente retratados com cabelos e barbas longas. O próprio Profeta, fisicamente, assumiu esta figura, que remonta milenarmente aos profetas bíblicos.

Sua admiração a Tiradentes levou-o várias vezes a Minas Gerais e, especificamente, a Ouro Preto, onde se abrigava em igrejas e repúblicas de estudantes. O monumento a Tiradentes na praça central da cidade era seu principal local de referência. Foi numa dessas idas a Ouro Preto, no convívio com os estudantes que estes lhe sugeriram o uso de uma bata, que acabaria por marcar definitivamente sua figura mística. Em outros municípios, Gentileza também explicitou seu respeito por Tiradentes. Em Brasília e, principalmente, no Rio de Janeiro, o Profeta assistia às homenagens de 21 de abril. No Rio, em frente à Assembléia Legislativa, suas aparições, nesse dia já eram aguardadas pela imprensa. No sete de setembro era sua vez de acompanhar as paradas militares.
No Rio de Janeiro, a maior marca de Gentileza era seu constante deslocamento pela cidade. O Profeta poderia ser visto, num mesmo dia, transitando nas barcas, na Praça XV, pregando na Central do Brasil, na Presidente Vargas e nas imediações da Rodoviária Novo Rio. A caracterítica comum desses lugares era o grande fluxo de pessoas.

Além das grandes viagens pelo país, os anos 80 marcaram uma grande intervenção de Gentileza na paisagem urbana do Rio de Janeiro. Entre a Rodoviária Novo Rio e o Cemitério do Caju, numa extensão de 1,5 km, Gentileza realiza seus 56 escritos murais sobre pilastras do Viaduto do Gasômetro. A obra de Gentileza demarca um espaço e uma permanência - mesmo que ameaçada - para sua mensagem. Desta feita, o Profeta não pinta mais sobre placas, mas diretamente sobre a superfície do concreto. Sua grafia e seus signos, já presentes em seu estandarte e em placas que realizava, se inscrevem agora na própria cidade, transformando pilastras em tábuas de seus ensinamentos. É neste momento que o Profeta apresenta, com toda ênfase, sua denúncia às condições do mundo e à ameaça que incide sobre a Natureza: o CAPETA CAPITAL no mundo contemporâneo é a reatualização do mal concreto que assola a humanidade. Mas os escritos do Profeta nos indicam também sua alternativa. É em seu próprio desígnio - gentileza - que se encontra a chave de um Princípio reorientador do mundo.

Para tal, Gentileza lança mão de uma simbologia religiosa que desperta a atenção pelos signos dos quais se vale e pelo acréscimo de letras nas palavras. Essa forma singular de apresentar-se, marca a apropriação de uma simbologia trinitária e quaternária que Gentileza desenvolve em sua linguagem: o UNIVVVERRSSO é a criação conjunta de F/ P/ E (Pai, Filho, Espírito) em VVV e duplamente participação em RR e SS. Assim como o AMORRR ao qual ele sempre se referia:
"amor material se escreve com um R, amor universal se escreve com três R: um R do Pai, um R do Filho, um R do Espírito Santo - AMORRR". Esta mesma marcação aparece em F/ P/ E/ N, incorporando um quarto termo (N) SSENHORRA em sua visão religiosa. Para o Profeta, todos estes termos manifestam gentileza, reafirmando a extensão de sua simbologia. Em última instância, a eficácia de sua alternativa recolhe sua força do alcance de seu próprio desígnio e daquilo que este é capaz de promover: GENTILEZA GERA GENTILEZA, nos convoca o Profeta, proclamando um Princípio ético e divino no mundo.

Esta obra, agora recuperada, constitui uma cartilha com os preceitos básicos de Gentileza à população. É um Livro Urbano, onde cada pilastra é uma página e a leitura é feita à janela dos veículos que por ali passam continuamente. Assim como o episódio do circo inscreveu Gentileza na memória popular, suas viagens pelo Brasil e suas inscrições, perenizadas na entrada do Rio de Janeiro, fizeram dele um dos maiores personagens populares do Brasil. A estrutura dos seus escritos e sua grafia, uma vez vistos, tornam-se inconfundíveis. No início dos anos 90, com a obra concluída, Gentileza costumava ficar ao lado da pilastra 1, sentado numa cadeira, acenando para todos como se estivesse na varanda de sua casa.

Gentileza era muito atento aos acontecimentos públicos: concentrações populares, comícios e passeatas eram sempre um motivo para que o Profeta pudesse levar sua mensagem às pessoas. Uma dessas últimas ocasiões foi a ECO 92, no Rio de Janeiro, onde ele conclama as nações e os presidentes ao uso da gentileza.
A partir de 1993, sua saúde fragiliza-se. Após uma queda, que lhe ocasionou uma fratura na perna, o Profeta já não possuía mais a mesma disposição que o levava, dantes, sem restrição, a todos os lugares. Acometido também de problemas circulatórios, sente cada vez mais dificuldade em andar. No início de 1996, decide retornar a Mirandópolis, São Paulo, próximo a sua cidade natal, onde vem a falecer no dia 29 de maio, aos 79 anos."



FONTE:
Rio Com Getileza
http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/

Um comentário:

  1. "Um Livro Urbano, onde cada pilastra é uma página e a leitura é feita à janela dos veículos que por ali passam continuamente", mas que poucos conseguem captar a real mensagem pois preferem interpretá-las como sendo de um louco...mas quem é louco afinal?

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